quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ser auto-trófico

Afirmo-me um ser auto-trófico, logo produzo a minha própria energia e matéria, pois eu não me alimento de comida que se possa comprar e cozinhar, mas sim dos poemas que eu próprio escrevo. Mas só redigi-los e nutrir-me deles não chega, é preciso que os outros, as pessoas que me rodeiam os leiam para que eu possa assim fazer a minha digestão e não morrer de dores de tédio e ansiedade insuportáveis. E passo a explicar e repiso, que não é preciso que os demais leiam e digam bem do que rabisco, podem dizer mal desde que leiam e critiquem.
Ás vezes as pessoas perguntam-me: então qual foi o poema que gostaste mais de fazer? E eu respondo: «o próximo, pois cada poema que faço atinge a um determinado instante um auge de felicidade, e é desse cume que procuro sempre».

António Seia

Ser


Queria ir em direcção ao nada,
sem destino,
sem uma única coordenada.

Queria alodialmente não estar só,
ser selvagem,
e respirar desigual dos outros.

Gostava mesmo era de ouvir mais,
pois a natureza fala tanto,
mas ninguém lhe faz caso.

Cada melodia do pássaro,
cada ramalhar da árvore,
cada sussurrado do vale,
cada passar do rio.

Pretendo ao menos uma vez,
voar livre nas asas do vento,
gritar até escassear o fôlego,
ser livre como o rio que corre e decorre quando quer.

Solto como as pétalas na brisa do verão,
Livre como em queda livre nos céus abertos,
Apartado como uma águia desaparecendo no horizonte.

Desejo ser corda de uma guitarra,
ser doce,
cantar o fado e a noite,
harmonizando todos os sons
unidos numa única pauta.

Queria isolar-me no auge da serra,
saborear o vento que não me cerra,
embeber a naturalidade de tudo,
ler Torga,
Ser...

Maia, 4 de Maio de 2009
António Seia

Sede perturbadora

Tenho fome,
de unir letras e versejar,
e da ponte do insaciável
não consigo atravessar.
É um vazio oco, que por nada
nada sem água o meu estômago.

Sinto sede de viajar infinitamente,
erguer o polegar por boleia ao tempo,
e ao seu sabor doce me embeber.
Contudo, o copo está vazio.

Ser turista,
isso é coisa de amadores,
e exuberantemente superficial,
apenas para quem frui de bom capital.

Eu desejo e preciso de algo além,
ser como um velho viajante,
cuja bengala e sabedoria,
conhecem e já cumprimentaram a alma
de todas as paisagens e vistas miradas,
todos os rios e oceanos cruzados, todas as
ruas e trilhos não mapeados...

Porém, o copo permanece vazio...

Maia, 22 de Janeiro de 2010 António Seia

Viagem Sonhada

Despido das suas velas,
icei-as,
parti no barco dos sonhos.

Navegava eu para o meu destino,
apenas numa gota de oceano,
mas era tão além e moroso...

Naveguei então noutro rumo,
e ali,
ali nada era como um breve sopro,
que se extingue no ar...

Ali,
a enigmática noite aparecia,
e trazia todas as pétalas das estrelas,
as quais eu colhia,
e ao lado,
uma imensa esfera colorida de branco,
que me sussurrou em tinta indelével
os versos de um poema,
onde tudo eram marés favoráveis e certas,
algo quimérico e cantado conforme o Fado,
mas ainda tão pouco imaginado...

E por isso,
falei ao céu:
Não consigo aportar o meu sonho...
E o sábio respondeu-me:
Em qualquer viagem,
o essencial é o percurso que tomamos,
pois é ele que nos compõe a memória.
O destino final,
é apenas mais um marco na história.

Maia, 8 de Julho de 2009
António Seia

Solstício d’Inverno

Tristes encontravam-se alguns,
outros ficavam radiantes.

Uns subiam as escadas,
para a tal cidade de Deus.
Outros desciam-nas, para cá ficarem,
conforme outrora o fez o menino.

Um solstício bem amargo esse.

Nem a neve melancólica caiava as ruas,
nem o frio ardente gelava,
nem a família disjunta unia,
nem a lareira me aquecia.

É isto que sois, Natal?
Dias lerdos e cansados
que nos travam os sorrisos?

Assim vos escrevo,
assim vos aviso,
para que componhais este Dezembro
com menos improviso.


Maia, 14 de Dezembro de 2009
António Seia

Leitura d'outrora

Eu era apenas mais um livro,
na companhia de páginas numeradas,
que contavam histórias verosímeis.

Um livro jovem,
pois quando desfolhado,
ainda cheirava a novo,
gritando a inacabado,
e muito pálido por dentro.

Redijo-me objectivamente,
logo, só eu narro o que lês,
e passa-se num lugar algures ai,
desse lado da janela,
onde avistando o céu estrelado imenso
como letras a desaguar
como um rio sem nascente nem foz,
me afogava no escuro da negridão.

Uma busca insaciável de uma margem
onde me pudesse apoiar,
e de um cais onde aportar.

Mas,
cada capitulo é uma era distinta,
porque o que era já fui,
(e gosto de pensar que foi
uma fase efémera),
o que fui já não sou,
e o que sou ainda está por imprimir.



Lisboa, 6 de Janeiro de 2010
António Seia